Luiza Lince – Graduanda em Ciências Sociais pela UFRJ
Pesquisadora do Passagens
Pesquisadora do Passagens
Uma coisa suja, impura, um dejeto, um rejeito, um resíduo, algo que não presta mais, que é inútil. Um lixo. Pode o lixo ser um canal de conexão com o sagrado?
“Esconjuro” é o nome dado por Paulo Nazareth à sua exposição na Galeria Praça do maior museu a céu aberto do mundo, o Inhotim. Sua empreitada artística mobiliza novas formas de relação entre indivíduo e terra, sua exposição não se restringe ao espaço delimitado da galeria, mas se expande por meio de outras obras espalhadas por toda a área do instituto.
“Esconjuro” é um termo ambíguo, como explicam os curadores Beatriz Lemos e Lucas Menezes. Ao mesmo tempo pode significar maldição e também encantamento. Paulo Nazareth usa o termo como verbo, assim ele faz a ação de abençoar aquilo que produz.
A conexão com a natureza é latente no seu trabalho. A exposição teve seu início durante o outono e isso não é coincidência. Durante o ano de 2024 os visitantes poderão apreciar a produção do artista ao longo do outono e primavera, e em 2025, do verão e inverno. Além da clara relação com o meio ambiente, é possível perceber a religiosidade também como pano de fundo da exposição e como elemento constituinte da mente artística de Nazareth. Entre pinturas, recortes, objetos, esculturas e performances, é o lixo coletado pelo artista para construir “Iemanjá” que chama a atenção.
Barcos-oferendas para a orixá de diversos tamanhos e materiais são expostos em conjunto a fim de compor a obra. Pode o lixo ser arte? Alguns outros artistas já nos responderam que sim. Mas pode o lixo ser arte sacra? O lixo, algo impuro, pode ser sagrado? Quando fala-se em “lixo sagrado” se abre um mar de interpretações sobre o que isso significa.
Na Antropologia da Religião o conceito é frequentemente usado para designar estatuetas quebradas, tijolos e azulejos remanescentes de igrejas demolidas, rasgos de escrituras canônicas, restos de despachos e por aí vai. Isto é, símbolos religiosos concretos que por algum motivo sofreram avaria. São materialidades corrompidas.
“Lixo sagrado”* sempre aparece como aquilo que sobra de algo que, um dia, quando ainda estava inteiro, era divino. Mas que, a partir do momento em que é deteriorado, que se torna lixo, perde uma parte da aura. E aí nós, os humanos, ficamos duvidosos sobre qual destino dar a essas coisas, afinal, elas são um pedaço da nossa conexão com o espírito, elas ainda carregam uma energia sobrenatural.
O que Paulo Nazareth faz por meio da arte é apresentar o caminho inverso: não é um item sagrado que se torna lixo. Na verdade, é um lixo que se torna item sagrado. Sua obra “Iemanjá” apresenta uma série de barcos-oferendas coletados pelo artista em lagos e rios. O acervo está em construção, é uma obra ainda inacabada. Paulo Nazareth chama de “arte preceito” porque tem tempo determinado de desenvolvimento: 2033, no aniversário de dois mil anos da morte de Jesus Cristo. A brincadeira com o entrecruzamento de crenças é mais uma forma de mobilizar a fé como esse elemento que o constitui enquanto artista.
“Esconjuro” é o nome dado por Paulo Nazareth à sua exposição na Galeria Praça do maior museu a céu aberto do mundo, o Inhotim. Sua empreitada artística mobiliza novas formas de relação entre indivíduo e terra, sua exposição não se restringe ao espaço delimitado da galeria, mas se expande por meio de outras obras espalhadas por toda a área do instituto.
“Esconjuro” é um termo ambíguo, como explicam os curadores Beatriz Lemos e Lucas Menezes. Ao mesmo tempo pode significar maldição e também encantamento. Paulo Nazareth usa o termo como verbo, assim ele faz a ação de abençoar aquilo que produz.
A conexão com a natureza é latente no seu trabalho. A exposição teve seu início durante o outono e isso não é coincidência. Durante o ano de 2024 os visitantes poderão apreciar a produção do artista ao longo do outono e primavera, e em 2025, do verão e inverno. Além da clara relação com o meio ambiente, é possível perceber a religiosidade também como pano de fundo da exposição e como elemento constituinte da mente artística de Nazareth. Entre pinturas, recortes, objetos, esculturas e performances, é o lixo coletado pelo artista para construir “Iemanjá” que chama a atenção.
Barcos-oferendas para a orixá de diversos tamanhos e materiais são expostos em conjunto a fim de compor a obra. Pode o lixo ser arte? Alguns outros artistas já nos responderam que sim. Mas pode o lixo ser arte sacra? O lixo, algo impuro, pode ser sagrado? Quando fala-se em “lixo sagrado” se abre um mar de interpretações sobre o que isso significa.
Na Antropologia da Religião o conceito é frequentemente usado para designar estatuetas quebradas, tijolos e azulejos remanescentes de igrejas demolidas, rasgos de escrituras canônicas, restos de despachos e por aí vai. Isto é, símbolos religiosos concretos que por algum motivo sofreram avaria. São materialidades corrompidas.
“Lixo sagrado”* sempre aparece como aquilo que sobra de algo que, um dia, quando ainda estava inteiro, era divino. Mas que, a partir do momento em que é deteriorado, que se torna lixo, perde uma parte da aura. E aí nós, os humanos, ficamos duvidosos sobre qual destino dar a essas coisas, afinal, elas são um pedaço da nossa conexão com o espírito, elas ainda carregam uma energia sobrenatural.
O que Paulo Nazareth faz por meio da arte é apresentar o caminho inverso: não é um item sagrado que se torna lixo. Na verdade, é um lixo que se torna item sagrado. Sua obra “Iemanjá” apresenta uma série de barcos-oferendas coletados pelo artista em lagos e rios. O acervo está em construção, é uma obra ainda inacabada. Paulo Nazareth chama de “arte preceito” porque tem tempo determinado de desenvolvimento: 2033, no aniversário de dois mil anos da morte de Jesus Cristo. A brincadeira com o entrecruzamento de crenças é mais uma forma de mobilizar a fé como esse elemento que o constitui enquanto artista.
Dentre os barcos-oferendas expostos por Nazareth, podemos observar pedaços de isopor, embarcações de brinquedo de tamanhos variados (feitas de plástico), um chinelo havaianas com um longo prego fincado nele, tábuas de madeira com espetos e retalhos, uma garrafa com uma caneta, um pote de sorvete com um pedaço de toalha preso a ele com ferro e arame e um galão de produto químico com uma tampa plástica espetada nele sustentada por um palito de churrasco. Tudo remetendo a barcos a vela. Além, é claro, dos tradicionais barcos-oferendas feitos de madeira.
Fato é que elementos físicos religiosos servem como um canal espiritual com o divino. Objetos materiais funcionam como tíquetes, como bilhetes, como Passagens para esse portal de acesso à espiritualidade. Velas, incensos, escrituras, indumentárias, sacrifícios, imagens; todas essas materialidades são carregadas de sentido para aquele que crê. Ora, se os barcos-oferendas coletados por Nazareth são confeccionados com o objetivo de estabelecer contato com Iemanjá, não seriam eles também materialidades sagradas, ainda que provenientes de resíduos?
Fato é que elementos físicos religiosos servem como um canal espiritual com o divino. Objetos materiais funcionam como tíquetes, como bilhetes, como Passagens para esse portal de acesso à espiritualidade. Velas, incensos, escrituras, indumentárias, sacrifícios, imagens; todas essas materialidades são carregadas de sentido para aquele que crê. Ora, se os barcos-oferendas coletados por Nazareth são confeccionados com o objetivo de estabelecer contato com Iemanjá, não seriam eles também materialidades sagradas, ainda que provenientes de resíduos?
O objetivo do artista é promover a reflexão sobre como o indivíduo se relaciona com a terra, sobre como ele a enxerga e qual o tratamento que dá à ela. De muitas formas esse debate se estende em suas produções expostas, mas é em “Iemanjá” que o artista inverte o questionamento da Antropologia sobre algo sagrado poder se tornar lixo. Pode o lixo se tornar sagrado? Essa é a pergunta que ele possibilita que seu observador faça.
Apesar de alguns outros artistas (o português Bordallo II e o brasileiro Vik Muniz, por exemplo) já terem atestado que lixo pode ser arte, Paulo Nazareth possibilita o flerte despretensioso entre Arte e Antropologia e, ainda que ele próprio não se dê conta disso, nos prova que lixo, além de arte, também pode sim ser sagrado.
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* A noção de lixo sagrado aqui mobilizada foi inspirada em: Stengs, I. (2014). Sacred waste. Material Religion, 10(2), 235–238. https://doi.org/10.2752/175183414X13990269049482
Apesar de alguns outros artistas (o português Bordallo II e o brasileiro Vik Muniz, por exemplo) já terem atestado que lixo pode ser arte, Paulo Nazareth possibilita o flerte despretensioso entre Arte e Antropologia e, ainda que ele próprio não se dê conta disso, nos prova que lixo, além de arte, também pode sim ser sagrado.
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* A noção de lixo sagrado aqui mobilizada foi inspirada em: Stengs, I. (2014). Sacred waste. Material Religion, 10(2), 235–238. https://doi.org/10.2752/175183414X13990269049482